500 anos de extermínio já destruíram um país inteiro, além de escravizar homens, mulheres e crianças

Há 500 anos, o povo guarani ocupava grande parte da América do Sul, desde os territórios hoje designados como Argentina, Uruguai, Brasil, Paraguai até o limite do Equador. O primeiro contato com os espanhóis se deu em 1516. Durante um século, os guaranis resistiram bravamente ao invasor. Alguns costumes “bárbaros” de portugueses e espanhóis chocaram a cultura guarani, que até então não tinha tido contato com civilizações capazes de massacre infanticida ou escravidão. Durante o século XVII, parte da etnia constituiu uma aliança com os jesuítas para construir uma resistência à violência ibérica. Organizou- -se a primeira “República Guarani do Paraguai”, como foi definida por alguns pesquisadores recentes. Politicamente no período, contudo, definiam-se como uma província submetida ao rei da Espanha.

A organização de uma província com esse nome pouco tinha em comum com o território pertencente hoje ao Paraguai. A “República Guarani” se organizou em torno dos rios que serviam de “estradas” e comunicação entre as reduções. Redução (ou missão) era o termo utilizado pelos jesuítas para definir as cidades guaranis. Cada redução constituía uma pequena cidade, geralmente com oito a dez mil habitantes cada.

Elas tinham uma arquitetura comum: se organizavam em torno de igrejas e escolas. Dizem os viajantes que essas eram as mais belas cidades do novo mundo, muito melhor organizadas que as do restante das colônias. A economia de cada redução sofria variação de uma cidade para outra. Na maior parte das vezes, os habitantes dedicavam de três a quatro dias de trabalho para a comunidade e descansavam ou garantiam para si os outros três a quatro dias. A produção de comida era dividida igualmente entre os habitantes organizados por representantes de ruas. Uma grande praça servia de espaço comum no centro da cidade. As reduções também desenvolveram manufaturas e uma pequena indústria com uma capacidade de exportação, apesar dos limites impostos pelas duas metrópoles ibéricas: Portugal e Espanha.

A “República Guarani” foi, durante algum tempo, uma forma de resistência moderada por parte dos índios. A intervenção jesuítica possibilitou que os habitantes das reduções tivessem status de cidadão cristão, o que dificultava (embora não impedisse) a escravização por parte dos bandeirantes. A contrapartida era a assimila- ção da religião cristã e a renúncia aos deuses da tradição guarani. Uma troca considerável aceitável pelas mães de crianças que, no decorrer do último século, foram largamente sequestradas para fins de trabalhos forçados. Na segunda metade do século XVII, praticamente todas as cidades da República Guarani tinham sua própria manufatura tecelã, produzindo vestimenta suficiente para as quatro estações do ano. As missões mais modestas tinham pelo menos dez oficinas. As mais abastadas chegavam até a 60 oficinas. As cidades possuíam também olarias, moinhos, serrarias, fábricas de óleo, engenhos de açúcar, curtumes e até instalações para a recém- -domesticada erva-mate. Todas essas construções ficavam sempre à margem da cidade. No centro, ou o coração em volta do qual a cidade se erguia, havia sempre uma igreja, uma escola e uma grande praça.

Comparadas às cidades do mesmo período no restante da América Latina, a República Guarani se distinguia pela evolução econômica e política. No restante das colônias, o que se vivia era a total escassez de recursos, como bem descreve Caio Prado Junior em História Econômica do Brasil. Suas indústrias manufatureiras encontravam-se exclusivamente dentro dos engenhos de açúcar. Charlevoix, em visita às cidades da república guarani, disse: “as redu- ções do Guairá podem rivalizar com as melhores cidades espanholas do Paraguai”. Algumas reduções chegaram mesmo a ter uma incipiente indústria bélica clandestina, com produ- ção de pólvora e armamento. As reduções foram invadidas diversas vezes por bandeirantes brasileiros. Oficialmente, há registros de mais de 60 mil guaranis presos e escravizados indevidamente, mas se estima que esse número tenha ultrapassado a cifra dos 300 mil. Além desses, ainda há os que foram mortos sumariamente, sem chegar a se converter em escravos. Pode-se pensar que, ao todo, mais de um milhão de pessoas tenham sido vítimas da violência do Brasil durante a existência das reduções. Essa realidade terminou fazendo com que a República Guarani optasse por se interiorizar mais, abandonando as reduções mais próximas das terras portuguesas.

A união entre Castela e Portugal, em meados do século XVII, contou com a intervenção papal, que proibiu a presença jesuí- tica nas reduções. Depois de abandonados pela Companhia de Jesus, os guaranis perderam a opção de convivência moderada com os europeus. Seguiu-se o massacre total dos moradores de todas as reduções da América do Sul. Gomes Freire de Andrade utilizou-se das estratégias militares mais modernas e isolou cidade por cidade guarani, a maior delas com 102 mil habitantes (a maior cidade brasileira do mesmo período tinha apenas 50 mil habitantes). Destruídas as unidades militares, Gomes Freire matava os civis de modo cruel. Terminou assim a experiência mais bem sucedida da história do continente. Clóvis Lugon, pesquisador do tema, lançou a tese de que as reduções construiriam um país de tamanho médio, com uma complexa estrutura política e econômica, com cidades interligadas por comunicações hídricas. Sua tese encontra- -se hoje publicada pela “Expressão Popular” e pode ser encontrada nas principais livrarias brasileiras. Na tese original publicada pela Paz e Terra, o autor formulou a hipótese de essa república ter sido a primeira experiência comunista dos estados modernos.